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Mollica - Um mundo sem lugar
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Há momentos e que a imagem se compraz com a imitação. Imitar os seres como estados de coisas. O mundo se torna medido, métrico, metrético, numa topologia de espaços naturais, numa ótica geométrica de distâncias determinadas, ele pontos-de-vista fixos. A arte, assim, converte-se em máquina auxiliar de um metafísica que crê na coisa-em-si. Fazer rir, no entanto, é encontrar-se com as imagens não como "estados de coisas", mas com possíveis que desbordam limites naturais, ou "naturalizados". Por isso, o riso desperta sempre o sentido, pois não suporta as formas capturadas, disciplinadas, constrangidas que supõem as coisas-em-si, ou naturezas atraídas pela gravidade. O espac.;o newtoniano grave, gravitacional, sujeito aos lugares ou espaços demarcados cartesianamente é objeto de riso de qualquer expressionismo.É o expressionismo que ri e faz corar não só "Newton como Lineu ou Buffon. Estes querem narrativas clássicas, prisioneiras de um mundo onde cada coisa tem seu lugar natural. Aristóteles sabia "tudo", sabia um organicismo metafísico em que cada coisa perseverava ou tendia ao seu "lugar natural". Rir deste espaço é o que faz Mollica. Ri do espaço comprimido numa ordem ou dinastia, ri do peso das coisas, transformando-as em caos-cosmos, por isso, muito leves. As imagens nele são ilocáveis. Tudo parece escapar do espaço como coisas voláveis, como mônadas vagabundas ou singularidades nômades.
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Os holandeses, franceses, portugueses que fizeram nossa História Natural trançaram limitações, colonizando não somente nossa gente mas também as plantas, aves, jacarés, tartarugas ... Porém, a potência da imagem nos liberta das profundidades ou elas leis divinas e faz a Terra ganhar força autopoiética. A imagem tornando-se pura superfície sem dimensões, participa de um mundo onde Deus cria jogos sem regras. Mudamos pela superfície, pelas imagens libertas de gravidade e profundidade cartesianas, para um mundo onde as divergências possam coabitar, coexistir.
O mundo fica leve e vagabundo, sub ratione possibilitatis. O sentido e os possíveis levam-nos ao riso. Foi Van Gogh quem experimentou o prazer trágico do riso, ao supor que seus quadros de cores não-naturais fariam das coisas meras anedotas. Talvez , completaríamos, anedotas de um Deus jogador.
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Colocar paisagens nos olhos dos animais, fazer peixes coexistirem no mesmo habitat de um borboleta, dar a uma fruta desproporções gigantescas, perder profundidades, tornar tudo ilocável, embaralhar as palavras e se preocupar para que as cores, os tons não sejam mais do que pátinas suaves sem profundidade. Esta é a impaciência de Mollica com a bobagem dos imitadores da natureza, ou utilitaristas que expropriam a riqueza dos movimentos e da luz. Dar as costas para a natureza cartesiana, mas, sobretudo, emancipar imagens dissonantes, divergentes e trazer liberdade e o riso à superfície. Mollica olha com olhos descêntricos um mundo que se despede das coordenadas cartesianas e ganha a dissipação de movimentos aberrantes, de um mundo sem lugar.
Ivair Coelho Lisboa
Sobre a exposição Aquarelas do Brasil
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