orlando

Para o Orlando
Orlando — assim chamado pela família, amigos íntimos e namoradas – era uma personalidade exuberante e indomável.Mas, sob as lentes mais refinadas, vislumbrava-se a delicadeza do menino sensível.
Tinha muitos atributos, que amalgamavam o artista extraordinário com o homem comum. E entre tantos atributos destacam-se três que sempre me impressionaram.
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A do homem que tudo enxergava.
De longe e de perto, o visível e o invisível, por dentro e por fora, por cima e por baixo. Das coisas e das pessoas.
Começo com o exemplo mais fácil, da acuidade do artista para ver, representar e seduzir o mundo que o cercava: um dia, espantada com as suas habilidades criativas entre a capacidade imaginativa, o papel e o lápis, desafiei-o a desenhar, em até dez minutos, um pônei plantando bananeira na ponta da tromba de um elefante. E ele cumpriu, na metade do tempo, orgulhosa e precisamente, a maliciosa tarefa.
Muito surpresa, indaguei-lhe de que modo conseguia tal proeza?
E, como quem nada quer, respondeu-me: “ora minha amiga, me concentro no branco do papel, como fazem os japoneses, e enxergo a projeção do desenho nascendo devagar, lentamente, até se completar! Eu mesmo, só faço passar o lápis por cima...”
E assim atravessava vida afora, com esse dom do olhar revelador. Fazendo e refazendo, pensando e repensando, colorindo e ampliando o que estava a sua volta. Enxergava, como comédia ou tragédia, as cenas do cotidiano, já que o mundo, para ele, assim como para Shakespeare, era um palco. Fosse nas mesas de bar que cercavam a sua, nas rodas de capoeira ou de percussão (onde se deu seu último suspiro), nas conversas mais íntimas, nas festas, na praia ou até nos velórios. E a realidade a que assistia da plateia era enunciada a quem estivesse no seu entorno, histrionicamente, em forma de dramaturgia crítica e de onde emergiam personagens possíveis, verdades definitivas — fábulas deliciosas. Tudo era excesso, agonia e êxtase.
E sobre esse panorama brota o seu segundo atributo, próprio dos homens sensíveis e brilhantes.
Dos homens que não cabem dentro de si.
Era assim que seu espírito e seu corpo conviviam um com o outro. O conteúdo transbordava para além do seu continente.
Era homem generoso, de muitas curiosidade e interesses. A ninguém negava os reflexos da sua inteligência, sua graça, seu conhecimento, seu humor, seu desejo. E é obrigatório lembrar de sua paixão pela música, mais alucinadamente pelo jazz, que o acompanhava em qualquer momento da existência, assim como do amor pela natureza grandiosa do Rio de Janeiro — tantas vezes representada em sua obra pelo morro Pão de Açúcar –, que dele fazia um carioca da melhor estirpe. Do fascínio pela arquitetura e seus espaços e do interesse genuíno no debate político, gestado como cartunista e ilustrador, nas redações de O Pasquim e do Jornal do Brasil dos anos 70, a obsessão pela arte como modo de existência fizeram da Escola de Artes Visuais do Parque Lage um dos seus leitos constantes por décadas, assim como dos discípulos que eram o seu melhor público e uma boa razão para viver; e, por fim, o encanto pelas mulheres, a quem sabia seduzir com seus talentos e, sobretudo, o de fazê-las rir — especialmente Judith, arquiteta com quem foi casado durante anos e teve Ana, sua única filha. Além disso, era mulher que conhecia os segredos e ritos da boa cozinha e do bem cantar, satisfazendo assim seu exigente paladar para a mesa e a música.
Desse caldeirão borbulhante aparecia o homem, brasileiro e universal. Da capoeira, dos batuques, do jazz, da feijoada, dos bicos de pena, pincéis e tantos matizes da cor.
Enfim, um ser romântico
O mundo próprio de Orlando constituía-se pela mais pura expressão das suas emoções, ao lado das quais, a razão se emparelhava com cerimônia e reverência.
Seu dia a dia era permeado pela força de opostos que navegava entre a alegria genuína e a tristeza mais profunda; a euforia e a melancolia; a máxima gratidão e arroubos de indignação; entre guerra e paz; o individualismo e solidariedade; o autocentramento e a generosidade; a opacidade e a transparência; o alumbramento e o desencanto.
E sem qualquer sombra de dúvida posso afirmar que, ao lado desse homem sumariamente aqui esboçado, fosse como amigo, familiar ou discípulo, tudo era possível acontecer, menos o tédio.
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Lidia Kosovsky
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