orlando

Salve o Mestre
Contemplar em apenas um texto a complexidade de Orlando Mollica me parece uma missão impossível. Além de ter atuado em diferentes frentes profissionais com talento e afinco como arquiteto, urbanista, cartunista, publicitário e professor universitário, foi também uma pessoa incrivelmente generosa e com um gênio fortíssimo. Neste texto, vou me ater ao Orlando artista visual e professor de artes que é como se afirmou e como quis se afirmar em sua carreira. Vou pedir licença para tratá-lo como Pintor. Contou-me certa vez que seu sonho sempre foi pintar, mas que a necessidade de uma profissão com título socialmente melhor aceito, em especial, por seu pai, fez com que ele direcionasse sua pré-disposição artística para o campo da arquitetura.
​
Começou a pintar relativamente tarde, por volta dos 40, quando já lecionava desenho na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e já era exímio aquarelista. Lá conheceu Luiz Áquila que foi seu professor de Pintura e outros pares que tanto o incentivaram e com ele trocaram. Era bastante estudioso, sua biblioteca tinha quase o mesmo número de títulos que o da Escola e alguns livros de raridade ímpar em um tempo no qual para adquiri-los não bastava um google ou uma busca rápida na Estante Virtual.
Era apaixonado pela cidade do Rio de Janeiro: tanto pelos singulares modos de viver do povo carioca quanto pela belíssima geologia local. Dizia que tinha as formas e posições geográficas de todas as montanhas memorizadas. Quem conhece sua obra não ousa duvidar desta sabedoria. Com anos de experiência na técnica da aquarela e uma admiração especial pelos pintores norte-americanos que adaptaram seu uso translúcido para tinta acrílica aguada sobre tela, ele magistralmente passou a inventar um Rio em que novas cadeias de montanhas se formavam a partir de silhuetas dos relevemos que conhecemos de vista o imortalizados através dos cartões postais.
​
As atividades de cartunista (Pasquim, O Globo e Jornal do Brasil) e de urbanista revelavam fortemente um lado social de Orlando que foi reverberado em sua obra pictórica bem antes de Hal Foster escrever “O artista como etnógrafo” – em O Retorno do real. Algumas de suas séries de pinturas refletiam um cronista, mais à la João do Rio numa mistura com um historiador de fatos que os livros oficiais não narram. Tinha um trânsito fácil pela cultura popular e um vínculo com a Zona Norte carioca onde o petropolitano fora criado. Sua vivência no mundo do samba já resultou em uma abertura de exposição com uma emocionante roda e, na Área Experimental do MAM-RJ, realizou, na década de 1970, o trabalho “Brincas como eu brinco” que consistia em uma instalação com uma grande tela pintada de branco sobre um chão coberto de jornais próxima de uma escada, um rolo de pintura e uma lata de tinta. Assinada por Zé Mané e intitulada Ho-menagem ao Pintor desconhecido ou perspectivas de abertura de um espaço ideológico. Mas tudo isso como cenário para que uma roda de capoeira acontecesse. Não ousemos chamar de isto de happening, no máximo traçar um paralelo com Hélio Oiticica quando este chegou ao mesmo MAM acompanhado da bateria da Mangueira.
Para além das pinturas aguadas que são comumente associadas ao seu nome, pintou inúmeras telas recheadas de carga matéria, muitas vezes utilizando materiais da construção civil misturados aos de Fine Arts. Em alguns destes trabalhos, parte de suas pesquisas de mestrado e doutorado na ECO/UFRJ ressonaram, pois lá se aprofundou conceitualmente na construção das imagens. De volta ao MAM em 2009 com uma individual, mergulhou nas revistas de decoração e, através de impressões de páginas em tela em larga escala, usou os ambientes simulados e as publicidades – de estética clean – como ponto de partida para Pinturas viscerais, carregadas de gesto e um tom de ironia. Na montagem, reproduziu as páginas das publicações com seus quadros nas paredes e móveis que pareciam reproduzir um showroom no icônico museu.
Ainda na gorda fatura de tinta, destacam-se Rio Lado B e Impressões Retocadas em que as críticas sociais ao modelo de cidade vendido na prévia da Copa do Mundo e das Olimpíadas já eram denunciadas por ele. Talvez o primeiro artista da cena carioca a ir contra as UPPs em um momento de oba-oba devido aos recursos financeiros que entravam. Fazer arte para ele sempre foi ter uma postura radical ou pelo menos minimamente crítica. Rio Lado B, além do gesto simbólico de colocar a Zona Norte em evidência, continha também memórias de sua juventude em uma cidade menos arrasada pelos projetos rodoviários que tantos bairros mataram em prol do progresso e, por conseguinte, seus estilos de vida.
Por fim, comento sua atuação como Professor Livre de Artes. Talvez o mais revolucionário que já tenha existido. Tinha duas premissas básicas: colocar o estudante em um fluxo de criação e liberar seu imaginário. A partir daí, consolidou uma metodologia singular que tive a honra de junto a ele colocarmos em palavras quando dividimos a sala de aula na EAV no curso de Desenho Contemporâneo. Para ele, foram 38 anos de casa, formando várias gerações de artistas. Sempre frisou que o mais importante era ser generoso com o conhecimento e que ao professor cabe mais aprender do que ensinar. Dos painéis coletivos, dos desfiles de moda-arte, dos exercícios de modelo de ação com pacientes psiquiátricos ou com cerimônias religiões afro-brasileiras em plena Sala de Desenho aos gostosos papos acompanhados de uma cervejinha no entorno da piscina, Orlando criou uma cultura educacional que respeitosamente busco levar adiante. Salve o MESTRE!
Bernardo Magina
Grande amigo, assistente de ateliê e de aula, artista visual e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Rio, 01/10/2020